Verdade ou (Incon)sequência
Os eleitores pronunciaram-se nas urnas, localizando o maior exercício que a Democracia nos proporciona. É assim há 50 anos, fruto da mais bela revolução do mundo, feita de flores, canções e vivas de Liberdade. Cabe aos derrotados felicitar os vencedores em exercícios mais ou menos verdadeiros de humildade.
Comecemos pela “verdade”, encaixando-a entre as aspas que lhe atribuem significados múltiplos, inflexões, nalguns casos genuflexões que conhecemos bem, porque as vemos acontecer à nossa frente, sem a preocupação de ser-se discreto. No domingo passado, funcionou a Democracia, e funcionou também a genuflexão, o beija-mão, o beija-bota. Isso aconteceu em várias partes do país, incluindo o concelho da Maia.
Poder-se-á argumentar que se trata de azia, a doença dos tais derrotados. O Bloco de Esquerda sofreu uma pesada derrota, a população entendeu retirar-lhe os dois deputados municipais e o terceiro lugar entre os partidos mais votados. Como rosto principal da candidatura à Câmara Municipal da Maia, assumo o facto com naturalidade e até com a tranquilidade de quem conhece as condições adversas que enfrentámos à partida, durante o percurso e, claro está, à chegada. Mas não há registo de azias ou refluxos esofágicos da nossa parte, vacinamo-nos contra essas perigosas maleitas que poderiam levar-nos a ser internados e aparecer com mazelas nos braços. Isso não!
Saiamos da Maia como Saramago saía da ilha “para ver a ilha”. O panorama mundial é incredulamente desfavorável à verdade. Não à “verdade”, mas à que se habituou a dispensar as aspas, por ser una e indiscutível. Queremos prova mais irrefutável do perigo que a verdade enfrenta do que o facto de a rede social criada pelo maior mentiroso do planeta – sim, Donald “Agente Laranja” Trump – se chamar “Truth”? Verdade, em inglês. Dela, passámos à perceção, palavra amiúde escolhida pela extrema-direita moderna, o “nacional-populismo”, como lhe chamo. É uma ambiguidade útil. Na prática, é a liberdade – desculpa, Liberdade – total de mentir com os dentes que se tem e os que não se tem.
Regressemos às terras de Gonçalo Mendes da Maia, do Visconde de Barreiros, de José Vieira de Carvalho. A vitória esmagadora da direita empoeirada, cheia de si e dos interesses de quem mais pode, enraizada até ao túnel que chegou a atravessar a rua junto à Praça do Município, reflete a vontade do povo. Não tenho provas que o contrariem e não creio que a Democracia se preste a “perceções”. Mas é ela também fruto do tempo, como toda a História. Há uma indiferença preocupante em relação à verdade, às ideias concretas, à tolerância, aos factos.
Repare-se que, munido do programa que a candidatura do Bloco elaborou para a Maia, percorremos todo o concelho, num périplo que se esforçou por ouvir as pessoas, sentir as suas queixas, os seus lamentos, escutar as suas críticas com todo o sentimento democrático. O debate com nível não nos assusta; motiva-nos. E ouvimos, sentimos, escutámos. Mas, nalguns casos, perante as nossas propostas concretas para a Maia, fomos brindados com mentiras que, mil vezes repetidas, se enraizaram como ervas daninhas. Claro, maioritariamente sobre a nossa coordenadora nacional, que se encontrava a caminho de Gaza, numa missão humanitária sem precedentes. As “verdades” transformaram-se em ódio, em insulto puro, mandando-me ir ter com a Mariana Mortágua e talvez ficar pelo caminho, dizendo que não votavam no Hamas, movimento em nenhum momento apoiado pelo partido que defendo.
Mas até as propostas concretas foram “amentiradas”, ora pela extrema-direita, ora pela direita dita tradicional, a do poder, através de porta-vozes inusitados, como o funcionário da Cultura da autarquia que, incapaz de discernir, nos acusava de querer colocar pessoas em contentores, quando a nossa ideia passava por casas modulares – aconselho a consulta online da diferença entre uns e outras – que pudessem acolher temporariamente pessoas em situação urgente.
No fim, ganhou o do costume. O que todos conhecem pela soberba, pela desconsideração com que trata os opositores na Assembleia Municipal, onde se perdeu o pluralismo. A direita domina e perde a Democracia mas, acima de tudo, perde o povo. A excelente deputada da CDU, Carla Ribeiro, foi justamente reeleita, mas seria positivo para todos – sim, para todos, incluindo para a maioria – que os candidatos do Bloco de Esquerda, mas também do PAN ou do JPP tivessem sido eleitos.
Agora, lamentamos o incómodo, mas a nossa oposição segue dentro de momentos. Desengane-se quem pensa que arrumou connosco. Estamos onde sempre estivemos. Estamos na Maia. Unidos e motivados. Nunca fizemos tanto sentido. Com humildade, sentido crítico construtivo, vamos continuar a fazer o nosso trabalho. Será um desafio. Será superado.
Carlos Luís Ramalhão
Escritor, ex-candidato do BE à Câmara Municipal da Maia