Quando não se escuta, a derrota deixa de ser um acidente
Fica mais simples de aceitar uma derrota quando se é democrata. Um democrata encara um resultado negativo com a bengala de que “a sociedade pode não ter sempre razão, porém, tem sempre razões”. Este princípio não deixa de ser uma imediata assunção de que fomos nós políticos, que falhámos. Não os eleitores, por muito que discordemos. Quando assim é, pouco mais há a fazer que não seja analisar resultados, corrigir erros, e inverter estratégias.
Já vi o Partido Socialista perder eleições com boas campanhas, mas também vencer eleições com campanhas menos conseguidas. Significa isto, que não existe uma relação direta entre boas ou más campanhas com os bons ou maus resultados eleitorais.
Matéria diferente é a estratégia, a mensagem, ou o argumentário. Creio, serem estes, os maiores desequilibradores de resultados. A estratégia dita o rumo, a mensagem desenha o mapa e o argumentário conduz o veículo. Se um destes três falhar, a campanha pode ser colorida, digitalmente sofisticada e logisticamente exemplar — que não servirá de muito. É como um GPS com morada errada: indica cada curva com rigor, mas leva-nos invariavelmente ao destino errado.
As campanhas eleitorais não podem ser exercícios de criatividade ou concursos de produção audiovisual. São, ou devem ser, atos de pedagogia democrática. E quando o eleitor não compreende ou não confia, é sinal de que ou não explicámos bem, ou não nos fizemos merecedores da sua atenção. Sim, quando a mensagem não passa o problema nunca é do destinatário.
A política, como a vida, não é apenas um problema de estética. É, antes de mais, um problema de verdade. E a verdade, quando não é percebida, não é votada.
Estas eleições legislativas não foram um epifenómeno irrepetível. Ainda que não representem o pior resultado do Partido Socialista, este terceiro pior registo é, paradoxalmente, o mais perigoso. Ao contrário do que sucedeu em 1985, hoje enfrentamos a ascensão de um partido populista que, apesar de construído sobre a lama do descontentamento e do medo, possui uma rede internacional estruturada, com recursos e legitimidade crescente nos círculos do poder europeu e global. Esse lastro confere-lhe resiliência.
Ainda assim, atribuir-lhe a responsabilidade exclusiva pela derrota socialista seria um erro. O Partido Socialista perdeu por culpa própria. E sem essa assunção frontal, nenhuma reflexão será verdadeira — e nenhuma recuperação possível.
Sinto, de há uns anos a esta parte, que o Partido Socialista se vai fechando sobre si próprio – de forma quase autista. E nesta eleição consumou-se o colapso de uma relação já fragilizada entre o Partido Socialista e o país real. Entre aquilo que proclama e aquilo que as pessoas realmente precisam. E não, não me refiro às grandes teses programáticas, mas às pequenas dores quotidianas. Aquilo que aflige as pessoas comuns quando saem para trabalhar, quando regressam cansados, quando não conseguem marcar uma consulta a tempo ou pagar a renda da casa.
O mundo que cada pessoa vê da sua janela é o mundo que importa. É esse o país que devemos querer governar — e não aquele que idealizamos em sede de conferências de imprensa.
E não, não advogo uma refundação. Sou Socialista. E acredito, como sempre acreditei, no Estado Social, no Serviço Nacional de Saúde como a maior conquista democrática, na escola pública, na segurança social pública – e não dependente da disposição dos mercados. Mas também acredito que o tempo passa. Que a realidade se transforma. E que o Partido Socialista não pode ficar parado.
A esquerda, quando se torna teimosa e preguiçosa, não resiste: fossiliza-se. Quero um Partido Socialista disponível para mudar, para ouvir antes de falar, para reaprender a estar onde as pessoas estão: nos cafés, nas filas do centro de saúde, nas paragens de autocarro, nas praias, nas fábricas, nas ruas. Não para lhes explicar o país, mas para escutá-lo da boca de quem o vive.
Porque o Partido Socialista não pode ser líder de franjas da sociedade. Tem de ser intérprete do sentimento comum. Tem de saber sentir antes de tentar convencer.
O Partido Socialista foi responsável pelas mais importantes transformações de progresso e desenvolvimento na história da democracia portuguesa. Foi — e deve continuar a ser — um dos principais intérpretes dos ideais da Liberdade, da Igualdade e da Solidariedade ou Fraternidade. E sempre que esteve à altura dessa missão, fê-lo com os olhos postos nas pessoas e com o ouvido atento ao país real.
Talvez esteja a hora de regressar a esse ponto de partida. Não como um gesto nostálgico, mas como um compromisso com o essencial: ser, de novo, um partido que escuta antes de falar. Um partido de pessoas e para pessoas.
Porque o futuro pertencerá àqueles que souberem ler os sinais do presente — e escutar o que pulsa, sem filtros, no coração da sociedade.
Ou voltamos a ser parte do quotidiano das pessoas, ou deixamos de fazer parte das suas escolhas.
Ivo Filipe de Almeida
Advogado;
Deputado na Assembleia Municipal de Almada