O Pé Descalço e o caso da Maia

O Pé Descalço e o caso da Maia

No mês passado, mão amiga ofereceu-me um livro muito interessante. É a reedição de 1956, «O Pé Descalço – Uma Vergonha Nacional que Urge Extinguir», da Liga Portuguesa de Profilaxia Social – uma Instituição Particular de Solidariedade Social fundada em 1924 e que tinha o objectivo de sensibilizar e educar a população para as boas práticas de saúde. É composto por artigos, nótulas e comentários publicados na imprensa entre 1928 e 1956; diligências da Liga junto das autoridades oficiais: para Governadores Civis, Câmaras Municipais, Comandantes de Polícia; Director Geral do Ensino Primário e do Distrito Escolar do Porto e a transcrição de alguns acidentes e mortes que a imprensa tem noticiado nos últimos 20 anos.

Em Agosto de 1926 foi publicado o decreto-lei nº 12073 que impunha: Proibição do trânsito de pessoas descalças na via pública das áreas das cidades, que seriam delimitadas por postura municipal; As disposições poderiam igualmente ser aplicadas a outras localidades por decisão dos governos civis; A transgressão do disposto seria punida com uma multa de $50 a 2$00. A reincidência teria a punição do dobro da pena. O carácter ambíguo da lei, para determinados locais – só proibido dentro das cidades, acabou por não resolver verdadeiramente o problema, era mais uma questão de imagem. Ao mesmo tempo, o Estado Novo publicou folhetos sobre a necessidade de erradicar estes usos, afastando os mendigos das cidades, desempregados que podiam trabalhar, vendedores ambulantes e outros parasitas que se serviam de “…manha, insolência, ameaça, violência, etc.”.

No ano de 1928 era assim que a Liga de Profilaxia alertava para o problema: «Todo aquele que anda descalço inferioriza-se espontaneamente perante a sociedade. O calçado constitui um dos atributos da civilização actual e dá a medida do respeito que o cidadão tem por si e pelos outros. O pé descalço pousa sobre os escarros, os excrementos e toda a espécie de imundices lançadas para a rua. Só por ignorância ou, incompreensível má vontade poderá teimar em manter um hábito tão nocivo, anti-higiénico e anti-económico… a despesa que fizerdes com o calçado representará sempre uma verdadeira economia e muitas vezes poupar-vos-á a irreparáveis perdas».

Este problema foi novamente abordado numa campanha nos anos 50, sobretudo no norte do país, para erradicar os persistentes casos que ainda existiam, nomeadamente nas zonas mais rurais e menos desenvolvidas. Muitas das pessoas que nasceram entre as décadas de 30 e 50 ainda são testemunhas desse triste hábito motivado, principalmente, pelas poucas posses e também por uma questão de conforto nalgumas profissões. Alguns maiatos mais maduros lembram-se bem desses tempos.

Na Maia, esse flagelo teimava em manter-se. Terra de cariz agrícola, as crianças, os trabalhadores rurais e idosos eram os que mais sofriam com esse hábito. Muitas das maiatas que iam vender ou lavar roupa no Porto iam descalças, só calçando as chinelas quando entravam na cidade, evitando assim a consequente multa. O perigo do tétano era contante. Era comum as crianças andarem descalças até na escola, evitando o uso dos inestéticos tamancos e chancas. Os trabalhadores rurais – criados e moços de servir, que mantinham os pés em contacto com o estrume dos animais, por vezes feriam-se e rapidamente os casos evoluíam de um simples corte ou perfuração com um prego, para casos de morte no dia seguinte. Infelizmente, foram muitos os casos que terminaram com esse triste desfecho um pouco por todo o país.

Muitos dos ferimentos que resultaram em tétano eram reencaminhados para o Hospital de Joaquim Urbano, localizado entre as Antas e a Areosa, próximo dos limites de Pedrouços, ainda pertencente a Águas Santas. Entre os casos recebidos vindos do nosso concelho entre 1953 e 1956, todos tiveram a sorte de serem curados, embora numa das ocorrências, uma criança de 5 anos tenha ficado em mau estado. No ano de 1957, o Governador Civil do Porto, Elísio de Oliveira Pimenta, através do regulamento nº88, actualizou o do ano de 1928, proibindo o pé descalço nas cidades, vilas e estâncias termais e nas sedes das zonas e regiões de turismo do distrito, proibição de pessoas descalças nas estradas nacionais e multas de 5 até 30$00 conforme a reincidência, podendo resultar até na prisão de 8 a 15 dias.

Artigo escrito por Rui Teles de Menezes, historiador

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