«Não é possível dizer-se que se acredita em Cristo, sem acreditar na ressurreição»
Desde os sete anos que dizia querer ser padre. Hoje, aos comandos de três paróquias na Maia, o Padre João Pereira é muito mais do que um rosto familiar no altar: é presença junto dos jovens, companheiro de caminhadas rumo a Fátima ou Santiago, e alguém que acredita profundamente no poder transformador da fé. Entre memórias de infância, desafios do sacerdócio e a celebração da Páscoa como o coração da vida cristã, o pároco de Santa Maria de Avioso, S. Pedro de Avioso e Gemunde partilha connosco a sua visão do mundo, da Igreja e da vida.
Maia Hoje (MH): Quando sentiu o apelo do sacerdócio?
Padre João Pereira (PJP): A História de uma vocação é sempre algo muito singular. Deus serve-se de muitos modos e de muitas pessoas para nos chamar a um projeto de vida, onde a felicidade se coloca como meta.
Desde muito pequeno, recordo-me que teria na volta de seis ou sete anos, dizia que queria ser padre ou professor. Entre brincadeiras de crianças, várias vezes brincava a “celebrar missas”. Entre várias propostas para frequentar o seminário, desde o meu quinto ano de escola, a verdade é que só integrei o pré-seminário, em Ermesinde, no oitavo ano escolar, por volta dos 12/13 anos, a convite de um catequista e do meu pároco, Manuel Fernando. Ainda que com muitas questões levantadas pelos meus pais, eles sempre me facilitaram esta possibilidade. Mas é no contexto do seminário em Ermesinde, que a vocação se foi consolidando e onde fui descobrindo que esta proposta que Deus me fazia, se afirmava cada vez mais como uma autêntica possibilidade, abdicando de outras propostas que se iam elaborando ao longo da juventude.

MH: É pároco em três paróquias, a saber, nas freguesias de Santa Maria de Avioso, S. Pedro de Avioso e Gemunde. É difícil gerir todas estas comunidades?
PJP: Graças à colaboração de muitas pessoas, a vida das comunidades segue mais ou menos o seu rumo. Claro que se denota uma maior ausência do pároco em algumas atividades e uma menor disponibilidade para as pessoas. A gestão de calendário talvez seja a coisa mais difícil de lidar, uma vez que desempenho outros serviços diocesanos. A escassez de sacerdotes tem-nos obrigado a repensar muitas coisas. Mas sobretudo tem-nos ajudado a evocar o caracter ministerial de todo o povo de Deus. Este é um tempo de graça, de retorno aos primórdios das comunidades cristãs, onde não havendo muitos presbíteros, as comunidades organizavam-se pelos carismas que o Espírito Santo fazia sublinhar nas pessoas das comunidades, onde cada um põe os seus dons a render, contribuindo para o bem de toda uma comunidade cristã. Com isto não quero dizer que a figura do sacerdote não seja importante. Certamente que o é, neste âmbito mais alargado de ministérios, onde um não está acima dos outros, mas em comunhão entre si. Precisamos de todos, e só com esta consciência é que a Igreja se pode redescobrir e responder às necessidades que a atualidade lhe impõe.
MH: Tem alguma iniciativa que goste de destacar?
PJP: A Eucaristia Dominical é para mim o momento alto de toda a semana. Contudo tem um particular carinho por atividades que envolvam formação ou acompanhamento espiritual de pessoas: as atividades de jovens, caminhadas, a preparação de adultos para o sacramento do batismo ou crisma. Mas o que mais me deixa de coração preenchido é saber que pude ajudar ou transformar a vida de alguém, seja no âmbito caritativo, seja no acompanhamento espiritual, onde os idosos encontram um especial lugar.
MH: Estamos a aproximar-nos da Páscoa. Qual a importância deste período?

PJP: A Páscoa é o núcleo fundamental de toda a vida cristã. Na verdade, é o coração que faz pulsar toda a ação da Igreja. Nela celebramos o que é fundamental: Jesus Cristo, deu a vida por todos nós. É a maior prova de amor que alguém pode dar. E Jesus fê-lo. Deste amor incondicional, brota o ensinamento de todo o Evangelho, que nos serve de “livro de instruções” para a nossa vida, se nos dizemos cristãos.
Sem esta entrega de Jesus, todo o legado que Jesus teria deixado, teria sido importante, mas penso que teria ficado no tempo, como frases bonitas e uma série de clichés. Com a sua paixão, morte e ressurreição, Jesus deu uma força vital a tudo o que disse, comprometendo-se e comprometendo-nos também, como discípulos amados.
Penso que é indiscutível que foi e continua a ser esta a grande força de transformação do mundo.
E o mais importante de tudo, é que aquilo que fazemos, em cada ano, não é meramente uma celebração comemorativa do que aconteceu há dois mil anos atrás. Ou seja, nós não fazemos apenas uma memória do passado. O que acontece quando celebramos a Páscoa é a consciência que hoje o nosso Deus continua a amar-nos a entregar-se por nós. A isto chamamos de memorial. Ou seja, o mesmo acontecimento continua tão presente na vida do ser humano contemporâneo deixando-se tocar continuamente por este amor. Basta olhar para a vida de tantos homens e mulheres que são sinais da presença e do amor de Deus no mundo, no que fazem, no que dizem, no modo como continuam a transformar a nossa realidade à luz do que há-de ser o Reino de Deus. Este Jesus além de presente como “forasteiro”, lembramos aqui o “caminho de Emaús”, ou seja, de resto irreconhecível, continua tão presente no caminho da nossa vida e a inspirá-la.
Este acontecimento de dois mim anos de história, este ato de amor, não me pode ser indiferente, porque também foi por mim, no meu contexto de vida, que Jesus deu e continua a dar a vida.
MH: Como é que sensibiliza os jovens para esta época?
PJP: A Juventude é um tempo muito exigente, pelas muitas questões que surgem duma vida em ebulição. Sabemos que os jovens gostam de se sentir uteis, e por isso, estão sempre muito predispostos para o serviço. E envolvem-se nas muitas atividades que esta época se nos impõe.
Nos coros, os acólitos, os grupos de jovens, nos compassos. Há uma envolvência generalizada na vida de toda a Igreja. E sou muito grato por isso. Tenho um amigo que diz muitas vezes que se os jovens se deixarem de envolver na Igreja, a sua ação fica muito estagnada. E é verdade.
Aqui também é muito importante de todas as pessoas da comunidade, no acolhimento que fazem às gerações mais novas. Mas penso que vivemos um tempo feliz, de procura de oportunidades para envolver os mais jovens na dinâmica eclesial.
No entanto, e culpado me confesso, porque nem sempre consigo estar presente, o que mais sensibiliza os jovens e a presença. Se estamos com eles, eles estão connosco.
MH: Há menos pessoas a acreditar na ressurreição de Cristo e na vida para além da morte?
PJP: Precisaríamos de um inquérito. Estou a brincar. Penso que não há menos pessoas a acreditar na Ressurreição de Cristo. Este é sempre um conceito muito difícil de explicar e tratar. Por isso é que precisamos da fé. E diante deste mistério, aproximamo-nos de joelhos, ou seja, com humildade, de quem não tem a pretensão de responder a todas as dúvidas, de algo que apenas se pode fazer uma experiência de fé. Nós acreditamos na ressurreição porque Jesus ressuscitou. E com isto, a vida ganha um sentido completamente novo. Claro que não é possível dizer-se que se acredita em Cristo, sem acreditar na ressurreição, porque aqui reside toda a verdade do que Cristo nos disse e nos chega desde os Evangelhos. Por isso, acreditar em Cristo é sinonimo em acreditar na ressurreição. O que existe atualmente, penso que é uma grande confusão com as teorias da reencarnação, que nos chegam por influência dos povos orientais, sobretudo a partir das muitas terapias que hoje existem por aí, providas destas culturas. Porém, a cada um cabe fazer a síntese à luz da sua fé. No entanto é indiscutível, como sempre foi ao longo da história da humanidade, a busca de sentido para a vida no confronto com o mistério da morte.
MH: Na sua perspetiva, hoje em dia, as crianças e os jovens estão mais próximos ou mais afastados de Deus e das suas doutrinas?
PJP: Todo o ser humano é um ser em busca de sentido para a sua vida. Um jovem, uma criança, por maioria de razão, dada a idade que tem, e pela necessidade de construção do projeto da sua vida, são seres em busca. Eu não gosto propriamente de falar em termos de proximidade, mas de abertura de coração. Os jovens estão próximos, eles estão aí, e Deus com eles. No entanto a fé joga-se no âmbito da relação e por isso da sensibilidade também. O problema é que num mundo onde existem tantas ofertas, pode-nos parecer que estão mais ou menos dispersos, nesta busca. Dar razões à fé não é fácil, e muito menos por imposição. Mas quando eles sentem e percebem aquilo que dizíamos relativamente à Páscoa, de um amor de Deus que os ama tal e qual como são, eles permanecem. Talvez não permanecem nos modos como gostaríamos, repetindo rituais, que para eles podem não ter algum sentido.
Uma mãe que deixa os seus filhos na juventude e não os acompanha, não lhes propõe caminhos, não faz caminho com eles, não lhes dá atenção, provavelmente vão procurar outros ambientes que lhes colmate essa falta. Ora, o mesmo acontece com a Igreja.

MH: Não quero terminar a entrevista sem que me conte como foi fazer a peregrinação a Santiago de Compostela e Fátima.
PJP: Ser peregrino é a nossa identidade. Das 10 vezes que fiz Santiago a pé, e das 3 vezes que fui Fátima, são sempre experiências diferentes entre si.
Isto de pegar numa mochila e pôr-se a caminho, para mim é das melhores experiências de liberdade e uma lição que preciso de constantemente retomar, para fazer sínteses, reorganizar o pensamento e o coração, sair do comodismo. É uma lição de vida. Nós passamos maior parte do nosso tempo a organizar coisas, a planificar… Quem me conhece sabe como tenho dificuldade em planificar. Os caminhos de Santiago e de Fátima ajudam-me a sair desta camisa de forças, das rotinas diárias. Na prática estas peregrinações são uma paráfrase da vida, em que tudo o que metemos a mais na mochila (símbolo do coração, da vida), pesa, impedindo-nos muitas vezes de chegar à meta, quer da etapa, que do caminho.
Os caminhos são uma escola de vida. São muitas as experiências que marcaram ao longo destes anos que faço caminhos. Pessoas que ficaram na minha história. Situações muito concretas, que ainda hoje têm influência nas minhas decisões. Ensinaram-me a ter calma, a ponderar muito bem antes de desistir, a ser mais resiliente à dor, e sobretudo a confiar.
MH: Sabemos que aprecia fotografia e que até fez um ensaio fotográfico. Como surgiu este gosto e o que refletiu após aquele ensaio?
PJP: Tudo se descobre nesta vida. A fotografia para mim, a apesar de não ter muito jeito, nasce como uma oportunidade para fazer história. Gosto muito de fazer deslizar o dedo na aplicação das fotografias para reavivar momentos. E a fotografia ajuda-me nisto. Aliás, quando comecei a trabalhar num café, por volta dos 16 anos, das primeiras coisas que comprei com o “meu dinheiro” foi uma máquina fotográfica. Hoje apenas registo momentos.
O ensaio fotográfico surgiu como proposta de um amigo fotografo que estava a fazer um trabalho fotográfico sobre sensibilidade e masculinidade. Há uma série de estereótipos associados à conjugação destas duas palavras.
Eu gosto muito de fotografia, mas detesto ser fotografado. E por isso aceitei fazer o ensaio, também como uma oportunidade de trabalhar algumas coisas em mim. O ensaio fotográfico foi mais do que uma atividade fotográfica, foi uma autêntica terapia psicológica e espiritual, onde temas como a liberdade interior, autoestima, amor próprio são tocados de maneira muito particular. Hoje agradeço muito esta oportunidade que me foi dada.

MH: Termino perguntando-lhe, o que é que aprecia com particular agrado e o que, gastronomicamente, não pode faltar à mesa de Páscoa.
PJP: Penso que não parece mal dizer que gosto de um bom vinho, mas na mesa de Páscoa faço as minhas delícias com Pão de ló e queijo.