Não brinquemos com as memórias

Não brinquemos com as memórias

Já temos mais de meio século de democracia.

Passaram-se 50 anos e hoje celebramos a coragem de quem, por todos nós, se libertou das amarras do medo e se soltou dos pesados grilhões do autoritarismo. Conquistaram-se direitos individuais e coletivos. Estado social. Separação de poderes. Liberdade. Não apenas para alguns, mas para todos.

Por outro lado, é precisamente nesta data histórica que a memória coletiva parece começar a fracassar. Fica esbatida e perde-se no tempo.

Durante algum tempo foi atribuída a Charlie Chaplin a frase: “Life is a tragedy when seen in close-up, but a comedy in long-shot” (A vida é uma tragédia quando vista de perto, mas uma comédia quando vista de longe).

Da minha parte, creio que não é o tempo – pelo menos, só por si – que altera os factos. Não. É diferente. O tempo não os muda os factos, mas pode distanciar-nos deles. Pode esbater a memória, e como consequência, relativiza-os. Faz com que – aos olhos de alguns – os factos não mais sejam factos, mas antes uma «estória» afastada. Uma história que torna grande percentagem na nossa sociedade demasiadamente permeável aos desvios revisionistas tão criativos e oportunos quanto errados.

Porém, o tempo não é o único responsável. Afinal, se 50 anos são muito tempo, então, é certo que 50 anos são ainda mais tempo para aqueles que cresceram sem memória.

Do mesmo modo que 50 anos são tempo bastante para que cerca de metade da população receba hoje informação por depoimento cada vez mais incompleto e indireto. Ou seja, a prova torna-se frágil, pouco exata, e a convicção de quem os escuta, escolta essa mesma debilidade. É fácil suspeitar e acessível relativizar. Torna-se simples acreditar em discursos de soluções fáceis para problemas complexos – colocando tudo o que for necessário em causa.

Agora, por altura dos 50 anos do 25 de abril ouve-se amiúde que é importante «orgulharmo-nos de toda a nossa história». Esta é uma oportuna visão holística de quem procura selar para não mais se discutir cada momento que compõe a nossa história coletiva. É um logro.

Não, o 25 de abril de 1974 não é um evento único, mas é incomparavelmente o mais importante de todos eles. É uma origem e é o verdadeiro Dia da Liberdade conquistada. O fim das prisões políticas. A liberdade de pensamento, de imprensa, de associação e de manifestação. Os direitos dos trabalhadores, a instauração do poder local. O fim da guerra colonial. A democratização do ensino. A criação do SNS. A igualdade entre homens e mulheres. Uma constituição. Uma democracia. Uma democracia que permitiu todos os demais dias.

As batalhas da memória são das mais importantes e também por isso, são aquelas que se devem travar. Todos devíamos estar convocados para essa luta. Todos temos esse dever.

Opinião de Ivo Almeida

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