Flor de Pedrouços – 100 anos que não se apagam

Flor de Pedrouços – 100 anos que não se apagam

O Grupo Dramático e Recreativo Flor de Pedrouços, outrora designado Grupo Beneficente Flor de Pedrouços foi criado a 15 de outubro de 1919 e que tinha como principal fim, o desenvolvimento de actividades recreativas e culturais e ainda, acções de beneficência.

Desses tempos iniciais, as informações são bastante escassas. Mas do que sabemos, um grupo de amigos, amantes das letras e da arte dramática, reuniram-se e avançaram com a formação de um Grupo Dramático e Recreativo. Longe estavam de imaginar que esta associação iria durar mais de 100 anos. As necessidades prementes de actividades de cariz cultural e assistencial estarão, com grande probabilidade, na génese desta colectividade.

Os tempos eram outros, bem difíceis. A vida dura do campo e das manufacturas levavam muita da gente de Pedrouços a ser mão-de-obra que fornecia a cidade do Porto. Como tal, era preciso fazer alguma coisa para animar estas pessoas, algo perdidas entre o centro da Maia – Barreiros, aonde raramente se deslocavam, sendo bem mais próximos do Porto, Matosinhos ou até Gondomar, até pela centralidade da Areosa, também ela, bem diferente do que é hoje. Tudo isto, numa época onde o analfabetismo era elevado e a existência de escolas era quase uma miragem. Assim, criou-se um polo teatral associado a um cariz também assistencial, como se prova pelos estatutos inicialmente aprovados.

Das primeiras informações recolhidas, temos o relato da realização de uma comédia em três actos com o nome ”A Chegada do Senhor Marquês”, que foi cedida ao Flor de Pedrouços sob uma caução de 5$00 a 14 de novembro de 1920. Esta representação foi, com muita probabilidade, a primeira representação em palco do Grupo Flor de Pedrouços. Segundo um documento da época, o Club Dramático Portuense, fundado em 1913, e dedicado à Arte e Instrucção, foi o fornecedor da peça. O auto de depósito da peça emprestada está assinado por José Augusto Afonso e a fotocópia deste documento foi entregue ao Flor de Pedrouços, ao Sr. Mariano Batista a 26 de outubro de 1982.

O alfaiate de profissão Abílio Portela, juntamente com amigos decidiram avançar com uma colectividade, direcionada para as gentes trabalhadoras e simples de Pedrouços, e assim, pelo punho de Adriano Baptista Coelho, foi elaborada a primeira acta do Grupo. A primeira sede social situou-se numa alfaiataria na rua Gonçalo Mendes da Maia, propriedade de Portela. Ao longo dos anos, esta passou por vários locais: uma casa no Largo 9 de Abril, conhecido por “Largo das Pachecas”, depois para uma casa quase em frente das últimas instalações, propriedade do Sr. Floriano Picheleiro. Mais tarde é que se fixou definitivamente na Rua dos Combatentes nº3, em Pedrouços.

Nos primeiros anos, homens como Alfredo Pinto, José Garcia e Artur Neves impulsionaram e ajudaram a dinamizar esta colectividade, juntamente com outros ilustres: Manuel Silva, Abílio Gomes, Mário Torneiro, Aires Oliveira, José Ribeiro, Maria da Graça, Francisco Fonseca e Rosília. A alma deste Grupo foi desde o início, o Teatro, e por aqui passaram autores e encenadores como Francisco Fonseca, Paulino Soares Garcia, Manuel Sílvio, Fernando Rocha, José Guimarães, Neca Rafael e Avelino Carneiro. Imaginem a quantidade de pessoas que por aqui colaboraram ao longo de um século do ponto de vista cénico: electricistas, carpinteiros, costureiras. Destacamos o cenógrafo Mário Mendes, que fazia de tudo um pouco com as mãos, na arte de trabalhar o arame e na pintura dos cenários. Mas o que realmente ele gostava era da pintura, onde passava noites inteiras à volta dos seus pincéis e tintas a dar vida aos cenários que imaginava.

Decorria o ano de 1947, quando o primeiro secretário da Comissão Organizadora do Grupo Dramático e Recreativo Flor de Pedrouços, da freguesia de Águas Santas, transcreveu os Estatutos que iriam reger a associação, em Assembleia Geral ocorrida a 12 de agosto. Sob a presidência de Aires de Oliveira, tendo como 1º e 2º secretários Abílio Gomes e Joaquim Lemos, o tesoureiro Francisco da Fonseca e os vogais Armindo Moutinho de Freitas e Gregório António da Costa, encontrando-se presentes várias pessoas que aderiram e foram inscritas como candidatos a sócios. Além dos mencionados acima, também faziam parte da Comissão Organizadora: Augusto Simões, Mário Augusto Leandro, Manuel Francisco Vale, Adolfo dos Santos Ventura, António Armando da Silva, Manuel António da Silva, Manuel Silva, Carlos Rodrigues Alves, Mário Alves Ferreira, Hilário Silva Ferreira, António Augusto d’Almeida, Manuel da Cunha Estrela, António Amaral Correia Júnior e Félix Augusto Pinheiro.

Nos primeiros anos apresentaram peças como A Chegada do Sr. Marquês (1920) ou a opereta Flor Campestre (1934). Esta última foi interpretada com recurso a 5 violinos, 1 flauta, 1 guitarra, 1 clarinete e violões, dirigidos pelo maestro Manuel Aleixo. Um espectáculo todo ele musical, o que evidenciava um cuidado na apresentação, pois tocar instrumentos por pauta musical não estaria ao alcance de muitos. Mais tarde seguiram-se momentos teatrais e musicais como A Recompensa, Rosa do Adro e O Padre Piedade. Deduzo que estas peças se enquadrariam no que se poderia apelidar de “Teatro Sério”, realizado até finais dos anos 50. Ao entrar em meados dos anos 60, o foco teatral passou para o Teatro de Revista.

A partir dos anos 60, o Flor de Pedrouços apresentou espectáculos originais como Festas da Cidade, Meio Pau, Agora Vai, Até Choras e Balões da Minha Rua, que esteve em cena a 1 de junho de 1973 na Associação Dramática e Recreativa os Leais e Videirinhos de Pedrouços. Este original de José Guimarães tinha orquestra dirigida por Paulino Soares Garcia, e um elenco onde pontificavam Ângelo Fernandes, o rei da gargalhada; Maria de Fátima, a voz de Cristal; Luísa Maria, a rainha da juventude; Manuel Soares, o cantor das plateias; Alcino Campos, o ídolo das multidões. Como apoio técnico: Aurélio Oliveira, técnico de luz; Alfredo Pinho, contra-regra; Mário Mendes, cenários; Abílio Ferreira, ponto; e Alcino Campos na encenação.

Também foram realizados passeios no Douro promovidos por esta colectividade, e entre as décadas de 50 a 70, era tradição a organização de matinés, soirés e concursos de dança ao domingo, o que bem contribuía para a animação da zona sul do concelho. Aqui dançava-se valsa, rumba, tango, pass-doble. Assaz curioso é que num destes concursos, um dos vencedores foi um homem que se amparava por uma muleta… Muitos desses bailes eram acompanhados por um conjunto musical. Um que granjeou grande fama e esteve presente nas instalações do Flor de Pedrouços foi o Conjunto Portugal, que chegou mesmo a ser o mais conceituado na cidade do Porto. Outra vedeta da canção portuguesa, António Calvário, marcou presença no extinto Cine Vitória em Rio Tinto e no Cine Teatro Vale Formoso no Porto, onde o Flor também se fez representar. No âmbito da vertente de beneficência, também era tradição, nos anos 60, pela época do Natal, esta colectividade contribuir com géneros alimentícios, bem como com roupa e calçado às crianças e idosos mais necessitados da freguesia.

A 19 de janeiro de 1961, tomou posse uma nova Direcção liderada por António Leites Fernandes. A Assembleia Geral era composta por António Maria Moutinho, José Carlos Rocha e Alexandre Herculano de Sousa Leal. Nesta reunião foi aprovado um voto de louvor a Paulino Soares Garcia e Mário Mendes pelos serviços prestados a esta colectividade.

Um dos exemplos de como, por vezes, as Assembleias Gerais descambavam no mau sentido era a da expulsão de sócios, como aconteceu em janeiro de 1962. A conferência das contas de gerência era outro ponto quente por altura desses momentos, às vezes era questionado o valor dos bens e serviços adquiridos, pois os próprios eram fornecedores de bens semelhantes, sendo essa uma forma de fazer negócio em benefício próprio. As questões monetárias de divisão de percentagens nos serviços de bar, nos valores a pagar na prestação de serviços – drogaria, bebidas, café, obras, carpintaria, limpeza, dias de trabalho, e até na cobrança de cotas aos sócios, trouxe amiúde, clivagens internas e um clima de suspeição em alguns períodos da colectividade.

A 10 de outubro de 1966, o Flor de Pedrouços apresentou no seu salão de festas “Agora Vai”, cujo produto reverteu em favor da Santa Casa da Misericórdia da Maia. Apresentado como um espectáculo de «crítica inofensiva, com muita graça, charges oportunas, inesquecível de arte e bom gosto». No dia 25 de novembro de 1967, na apresentação do espectáculo “Festas da Cidade”, ocorreu uma homenagem a Orlando Campo Grande com a participação de todo o elenco e Direcção liderada por António Leite Fernandes e os restantes membros: Alexandre Leal, António Álvaro dos Santos, Mário Mendes, Paulino Garcia. Esse momento encontra-se imortalizado numa fotografia com o elenco e está assinada por todos os intervenientes.

A 7 de Abril de 1971, o Flor de Pedrouços informou a Federação das Colectividades do Distrito do Porto que o espectáculo “Festas da Cidade” se encontrava à disposição da Federação como forma de retribuição pelo facto de serem novamente associados dessa Federação. O Flor de Pedrouços, dias antes do 25 de abril, comunicou à Escola Dramática de Milheirós que tinha em cena a revista em dois actos da autoria de Neca Rafael, “A Meio Pau”, classificada para maiores de 14 anos. Oferecia-se esse momento por 2500$00 em data a marcar, ou então “irmos com a casa a meias mas temos umas despesas um pouco elevadas”.

O dia 20 de outubro de 1974 foi o escolhido para uma homenagem a duas figuras que fizeram história no Flor de Pedrouços: Mário Ferreira Moutinho; e Paulino Soares Garcia, o homem que se encarregava do piano e do violino, mesmo não sendo profissional da área, conseguia criar melodias de belo efeito, chegando mesmo a escrever algumas letras para Teatro de Revista. O responsável da Comissão Organizadora, Francisco César, optou por associar o 56º aniversário da colectividade a essa homenagem, para o qual foi convidado para presidir a estes actos, o Dr. Ângelo das Neves, Presidente da Federação das Colectividades do Porto.

O jornal O Primeiro de Janeiro, na sua edição de 27 de novembro de 1978, realizou uma reportagem sobre a «grandiosa» revista do Flor de Pedrouços, “C’uelas a Cantar”, identificando o ponto alto da revista, num número protagonizado por um expedito ardina – Janeiro, olhó Primeiro de Janeiro!

A 2 de Julho de 1982 é atribuído pela Câmara Municipal da Maia, o Diploma de participação nas jornadas de Intercâmbio de Teatro ao Fim de Semana e outro pela presença no Maia/82, Mostra de Actividades do Concelho da Maia. Também estiveram presentes no V Festival Internacional de Folclore de Águas Santas, organizado pelo Grupo Folclórico Fontineiros da Maia, a 24 de julho de 1982. Mas o ponto alto desses anos foi mesmo a organização do Flor/87, um evento cultural único no concelho, com Orlando Campo Grande a liderar o projecto. Aberto a todas as colectividades amadoras com teatro, visava promover o teatro amador, o intercâmbio entre grupos do concelho e distrito do Porto e dinamizar a cultura popular de Pedrouços. Mesmo com as constantes dificuldades financeiras, o grupo de Pedrouços lá avançou para a iniciativa que se viria a revelar um enorme sucesso. No encerramento, teve a palavra o Dr. Vieira de Carvalho, figura bastante acarinhada pelos presentes, onde manifestou a sua satisfação pela iniciativa, incentivando os dirigentes a continuarem esta nobre missão cultural assim como de continuarem os trabalhos de ampliação e remodelação das instalações da Rua dos Combatentes, aos quais prometeu o tão desejado «apoio».

Depois de um hiato teatral de vários anos, o nome do Flor de Pedrouços voltou a pisar os palcos dos mais variados pontos do nosso país através do seu Corpo Cénico, superiormente dirigido por Orlando Campo Grande, homem que pelo seu empenho e perseverança. Até 2000, foram efectuadas diversas realizações por esta colectividade, algumas com crianças, como o Mini-Aturas, teatros e animações de rua, cortejos de oferendas para angariação de fundos para a Santa Casa de Misericórdia da Maia, Festas de S. João, Festas de Natal, uma exposição sobre a história da colectividade, noites de Fado ou o original “enterro” do João (ou do Carnaval). Entre os anos de 1992 a 1995, o Flor de Pedrouços chegou a atingir o número de 243 associados mas com o passar dos anos esse número foi diminuindo assim como o valor das cotizações. Segundo um pequeno texto de Francisco César, figura incontornável do Flor, no jornal da Junta de Freguesia de Pedrouços de 1994 este associado referia os altos e baixos da associação, como acontece com a maioria das colectividades. “E é esta situação dinâmica e constante que vai preenchendo a história da colectividade, com anos de maior ou menor valência cultural, que, na verdade, lhe empresta um constante fervilhar colectivista e um certo bairrismo saudável, até porque «uma casa que não é ralhada, não é governada».

Infelizmente, o Flor envelheceu demasiado, não soube reinventar-se e começou a definhar na entrada do novo século. Depois da compra do edifício da sede pela Câmara Municipal e entrega ao Flor, a colectividade ainda realizou bastantes espectáculos de revista mas sem a qualidade de outrora ao nível dos textos ou guarda-roupa. Ao mesmo tempo, o bar da sede, sinónimo de receitas mas também de problemas, veio os seus proveitos diminuírem assim como a frequência das instalações pelo cada vez mais reduzido número de sócios activos. Os esforços de José Manuel Matos, Francisco César ou Diamantino Neves não surtiram os efeitos desejados, e mesmo cumprindo os 100 anos numa cerimónia em outubro de 2019, a pandemia do COVID-19 levou à entrega da chave do edifício e decretou o fim do Flor de Pedrouços em 2022. Chegava ao fim uma colectividade única, com um percurso recheado de sucessos, muitos espectáculos na Maia e um pouco pelo país. Uma associação de referência pelo muito que fez pela cultura e pelas pessoas de Pedrouços. O meu muito obrigado a todos que contribuíram para esse desígnio.

Rui Teles de Menezes
Historiador e Técnico Superior de História da CM Maia

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