Campeões do Mundo na Estalagem do Lidador

Artigo do historiador, Rui Teles de Menezes
1958. Ano da carta aberta de D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto a Salazar, de greves no Porto de Leixões e na Afurada por aumentos salariais, da inauguração do hospital de S. João e da visita da rainha de Inglaterra ao Porto. E das célebres eleições presidenciais onde concorreram três candidatos: Américo Thomaz, Arlindo Vicente (que desistiu a 30 de maio) e Humberto Delgado. Enquanto decorria a campanha eleitoral, entre comícios, conferências e recepções, aconteceu um momento marcante na vida portuense – a realização do XIII Campeonato do Mundo de Hóquei em Patins (Foto 1).
Composta pela geração de Moçambique, o grupo era formado pelos guarda-redes Moreira e Matos, e os jogadores de campo Vaz Guedes, Adrião, Bouçós, Velasco, Bernardino, Edgar, Perdigão, Trabazos, Mário Lopes, sob a orientação do selecionador nacional Emídio Pinto. Uma seleção renovada, depois das saídas de jogadores de uma geração dourada. Entre eles estava Correia dos Santos, descrito como o melhor avançado mundo da sua altura. Foi capitão da Seleção Nacional e com Emídio Pinto, António Raio, Edgar e Jesus Correia (também um dos 5 violinos do Sporting em futebol) formaram os “cinco violinos do hóquei”.
Entre os dias 24 a 31 de maio, a seleção nacional disputou 9 jogos em 8 dias, facto bem revelador da dureza da prova. Portugal venceu pela 7ª vez o Mundial, ficando atrás de si a seleção espanhola e em 3º lugar, a Itália. O local escolhido para os jogos, o Palácio de Cristal, é hoje considerado um autêntico talismã para a seleção nacional devido a todos os Mundiais aí realizados – 1952, 1956, 1958, 1968 e 1991, terem sido conquistados por Portugal. O pavilhão portuense foi projetado pelo arquiteto José Carlos Loureiro, bem conhecido dos maiatos pois do seu risco saíram o Centro Cívico (Fórum Maia e Biblioteca), o edifício de serviços onde se encontra o Hospital da Maia e o estádio do ISMAI, premiado na 1.ª edição do Prémio Municipal de Arquitetura João Álvaro Rocha 2022.
Uma referência de Moreira – Estalagem Lidador
Ao procurar informações sobre o Mundial de Hóquei tropecei numa ligação à Estalagem do Lidador (Foto 2), nas Guardeiras, já vão perceber porquê. Também encontrei outra estalagem com a mesma denominação em Óbidos, que foi o primeiro estabelecimento criado pelo Estado para atividade turística, no final dos anos 30, mas que nunca chegou a funcionar como estalagem. Em ambos os casos, a designação “Lidador” remete à figura do lendário Gonçalo Mendes da Maia, o “Lidador”, o cavaleiro medieval associado à defesa do Reino contra os mouros.

A “nossa” Estalagem do Lidador possui uma história rica e complexa, profundamente entrelaçada com a evolução da região e, em particular, com a crescente importância do Aeroporto de Pedras Rubras. A proximidade com tão relevante estrutura, na época ainda Campo de Aviação e ao Porto de Leixões traduzia uma mais-valia que não passava despercebida. O facto de estar rodeada de uma grande mancha verde tornavam-na bastante procurada para períodos de descanso e estágios desportivos de várias equipas e seleções de diversas modalidades, um pouco como acontecia na sua congénere de Barca, a Estalagem da Quinta do Galo, na EN14.
A construção da Estalagem do Lidador remonta ao período pós-Segunda Guerra Mundial, quando o tráfego aéreo e a necessidade de infraestruturas de acolhimento começaram a ganhar forma, tendo sido inaugurada no dia 3 de outubro de 1953. Segundo a descrição da notícia da inauguração no jornal O Primeiro de Janeiro, este novo espaço seria o do «turismo prático que consiste em oferecer aos turistas aquilo que eles apreciam – comodidade, bem-estar, conforto. Quem viaja não precisa de recorrer aos grandes centros para almoçar, jantar, pernoitar ou passar uns dias aprazíveis, de doce encantamento. E os automobilistas, principalmente, viajando sós ou acompanhados, nada perdem em visitar a Estalagem do Lidador».
Com a presença das autoridades do distrito, entre as quais o presidente da CM da Maia, Carlos Pires Felgueiras; o Dr. Corte Real em representação da CM do Porto; Dr. Fernando Aroso, Presidente da CM de Matosinhos; capitão Nazaré da PSP; Tenente Coelho Dias da PIDE; Alberto Campos Oliveira Maia, vice-presidente da CMM; Major Oliva Teles; Coronel Carlos Moreira pelos Bombeiros Voluntários da Maia e um sem número de representantes de organismos estatais e empresas. Nos discursos usou da palavra o responsável da Atlantic, a companhia portuguesa de petróleos que iniciou a exploração de gasolina na Estalagem, onde saudou todos os presentes, enalteceu a obra realizada, sem deixar de dar um forte abraço ao proprietário Augusto Moreira Dias (avô do nosso saudoso José Maia Marques). Depois intervieram Fernando Aroso, Alberto Oliveira Maia, Jorge Novais, Trajano de Almeida, Marques Gomes, Cabral de Matos, Luís Bessa, Corte Real, o Coronel Moreira e por fim, o Dr. Carlos Felgueiras, onde desejou «as maiores felicidades ao autor do empreendimento a bem do turismo da região e como estímulo para futuras realizações».
Esta nova perspectiva de valorização, incremento e consciência sobre as virtudes do Turismo, onde a importância e desenvolvimento turístico da região envolveu a hotelaria e restauração, assentava sobremaneira na visão em termos arquitectónicos e estéticos de António Ferro, visto como o grande dinamizador da política cultural do Estado Novo. O próprio idealizou a «Campanha do Bom Gosto», sendo a Revista Panorama um bom exemplo dessa propaganda. A estalagem consolidou uma posição no turismo na estrada Porto-Póvoa, em grande parte pela demanda de alojamento por parte de viajantes (Foto 3), pilotos e pessoal ligado ao aeroporto. Com o constante crescimento do aeroporto (passageiros, carga), serviços associados e tráfego viário, a Estalagem do Lidador beneficiou da sua localização estratégica, a poucos quilómetros do aeroporto, o que lhe conferiu uma vantagem competitiva.

A Estalagem também se tornou conhecida pelo seu ambiente acolhedor e pela gastronomia tradicional portuguesa, como o arroz de forno e os tradicionais folhados de ovo para sobremesa. A sua reputação solidificou-se pela qualidade do serviço e pela capacidade de adaptação às necessidades dos seus clientes. Palco de numerosos eventos familiares de habitantes da Maia e da região (Foto 4), a estalagem recebeu incontáveis reuniões de negócios. Muita da política maiata foi aí debatida, pois José Vieira de Carvalho era cliente assíduo, tendo até uma sala “quase” reservada para aí reunir com políticos e despachar papelada da Câmara (Foto 5).


Quartel-general da seleção de Hóquei em Patins
Mas voltemos a 1958. A Estalagem do Lidador foi a casa da seleção nacional de Hóquei em Patins, aí se instalando desde o dia 17 de maio para dar início ao estágio de preparação da prova.
Para melhor perceber como funcionava o quartel-general da seleção, socorremo-nos das descrições de quem por lá passou, o antigo jogador Velasco relatou no seu blog, a passagem por terras maiatas: – “Cumprimos os treinos em Lisboa e partimos para o Norte, para o estágio que teve lugar na Estalagem do Lidador, na Maia, sob a inesquecível liderança de Emídio Pinto, auxiliado pelo treinador António Henriques e que deram origem à Grande Família que se formou e se solidificou de forma tranquila e em franca camaradagem”. Esse período encontra-se bem documentado fotograficamente (Foto 6), sendo possível identificar momentos de lazer, visitas de personalidades e grupos ao local. O mesmo Velasco refere que “a Seleção Nacional, com as suas idas aos treinos, atraía mirones com quem trocávamos palavras e cumprimentos e a imprensa dava enorme cobertura aos acontecimentos. Tivemos a Televisão na Estalagem onde realizaram um apontamento acerca do dia-a-dia da Seleção que ficou histórico pois, como média, ainda se encontrava na sua meninice”.

Efectivamente, a tal reportagem mostra um ambiente descontraído, com Francisco Velasco a tocar viola junto com a restante comitiva no exterior da estalagem (Foto 7), enquanto passava um ou outro carro na hoje hiper movimentada EN 13. Já no interior da estalagem, mais um fragmento da vida quotidiana da seleção é captado pelas câmaras, um animado jogo de loto. E por fim, uma entrevista ao selecionador nacional Emídio Pinto. Estes excertos constam no arquivo da RTP, no programa Bodas de Ouro do Hóquei em Patins – Parte I, a partir do minuto14:40.

José Maia Marques, profundo conhecedor do local, pois, o seu avô Augusto Marques foi proprietário da Estalagem, descreve o edifício com bastante pormenor: – “pautava-se por uma sobriedade de linhas, estava dotada no piso térreo com receção, instalações sanitárias, duas salas de jantar, sala de estar, e as várias instalações para a confeção de refeições. Num corpo que se prolongava para norte, um amplo salão de festas com palco, que também servia de sala de banquetes e, ao fim de semana, de sala de refeições. No piso superior, 10 quartos com todos os cómodos. Na cave, um bar inspirado pelo trabalho e armazenagem do vinho.
Com uma decoração escorreita, baseada nos padrões que António Ferro definira alguns anos antes, mas depurados de exagerados «regionalismos», os espaços eram agradáveis, acolhedores, luminosos, à dimensão humana. Contava já com várias inovações como casa de banho e telefone nos quartos, sendo que todos estes tinham acesso a um terraço. E, claro, como era hábito, uma instalação de venda de gasolina e óleos, ainda hoje muito movimentada. Ali estiveram e pernoitaram vários membros do governo, governadores civis, presidentes de câmaras, deputados da nação, etc. O próprio Presidente do Conselho, Dr. Salazar ali esteve. O seu serviço de restauração era famoso pela sua qualidade, atraindo, mormente ao fim de semana, muitos visitantes. Os seus lanches de sábado e domingo eram famosos”.
Pontos fortes da Estalagem: a proximidade da cidade do Porto, do Aeroporto (campo de aviação, como se chamava nos anos 50) e do porto de Leixões, bem como a mancha verde que a rodeava, fizeram da Estalagem um ponto muito requisitado para estadias pontuais assim como mais prolongadas para grupos maiores, masculinos e femininos, como a Seleção Nacional de Hóquei em Patins de 1958.
A memória de tempos idos
Nos dias de hoje, além do decrépito edifício que merece ser recuperado, respeitando a traça da época, só resta em funcionamento o posto de abastecimento de combustível da Galp, registado em 1984 em nome da firma RAMOS TEIXEIRA & CARMO, LDA. Saliente-se que após a parceria com a Atlantic (que viria a incorporar a BP), sucedeu-se a SACOR e seguindo-se a actual GALP. Embora a Estalagem do Lidador esteja encerrada, o edifício continua a ser um marco na paisagem e ponto de referência para muitos que lá passam, o seu nome continua a ser evocado como parte da história local de Moreira da Maia. Representa uma época em que a hospitalidade tinha um cariz mais pessoal e em que os estabelecimentos hoteleiros eram muitas vezes parte integrante da comunidade. A sua história serve como lembrança da evolução do setor do turismo e da necessidade de adaptação num mercado em constante mudança. Quanto ao edificado, urge preservá-lo na medida do possível, de forma a recuperar o brilho e utilidade de outrora. O progresso não pode ser desculpa para o desaparecimento de um espaço de referência como este, um marco de desenvolvimento na história da Maia na segunda metade do séc. XX.
Por fim, um desejo: Festas Felizes para todos e um 2026 cheio de coisas boas!!



