«Cada vez mais, muito poucos têm muito e muitos têm quase nada»

«Cada vez mais, muito poucos têm muito e muitos têm quase nada»

Mário Nuno Neves, doutorado em Ciência Política, Cidadania e Relações Internacionais, autarca e docente universitário deu-nos uma entrevista, que reproduzimos na íntegra, onde nos dá conta, neste início de ano, da apreciação que faz da situação internacional, nacional e local.

MH – Como vê o estado do mundo neste final e início de ano?

MNN – O mundo vive hoje momentos muito difíceis. À escala planetária, permanecem e agravam-se desigualdades, em que cada vez mais muito poucos têm muito e muitos têm quase nada ou nada, a fanatização religiosa ao serviço de projetos políticos de poder cresce em todas as latitudes, o racismo e xenofobia grassa, há uma enorme falta de lideranças políticas de qualidade (veja-se que os Estados Unidos da América estão condenados a escolher como presidente um patife e um senil), o negócio do armamento é cada vez mais lucrativo, a crise ambiental começa a ter uma evidência trágica, as guerras e as guerrilhas, os atentados sucedem-se, enfim, como diria Thomas Kuhn, vivemos um terrível momento de Ciência Anormal.

A guerra na Ucrânia, provocada pelo neoczarismo-putinista russo, tende a prolongar-se e a Terra Santa está a ferro e fogo depois do ataque terrorista do Hamas a Israel, país cujo o Estado, há décadas, pratica uma política racista e a raiar o genocídio em relação ao desgraçado Povo Palestiniano, cujos efeitos, na região e em todo o mundo são catastróficos.

Na Ásia, joga-se a parte mais perigosa do conflito latente entre os EUA e a República Popular da China, em que a questão de Taiwan é apenas uma de muitas, e do continente africano e sul-americano chegam hordas de imigrantes e refugiados, quer à Europa, quer aos EUA, fugidos da miséria e da ausência de futuro.

A União Europeia vive amarrada às suas próprias contradições, incapaz de ter um papel verdadeiramente importante no Sistema Internacional, subserviente aos interesses dos norte-americanos, do eixo Berlim-Paris e incapaz de pôr na ordem chantagistas como Viktor Orbán, tentando resolver tudo com dinheiro, como por exemplo que faz com a Turquia para suster refugiados, ao mesmo tempo que se sente desconfortável com a retórica da espécie de neo-sultão que é o senhor Erdogan.

Organizações Internacionais importantes como a ONU, precisam de reformas profundas no seu funcionamento, para poderem ser eficazes enquanto mediadoras e saneadoras de conflitos, reformas que não convêm aos membros do seu Conselho Permanente e, portanto, são sistematicamente bloqueadas, uma espécie de jogo sujo ao serviço de interesses particulares e inconfessáveis.

Dito de outra forma, o Planeta Terra, a nossa casa comum, está um caos, em que a esperança de regeneração é cada vez menos visível, em que só a juventude, se nisso apostar, poderá trazer alguma redenção.

MH – E quanto à situação política, social e económica do país?

MNN – A situação política e social portuguesa, que não escapa ao problema de falta de lideranças de qualidade e de um crescente desinteresse cívico, também não é famosa.

No que diz respeito à vida dos cidadãos, cresce a população que não pode sobreviver com dignidade sem as ajudas do Estado, a classe média perde todos os dias poder de compra e vive asfixiada em impostos e créditos e tende a desaparecer, as empresas estão híper-carregadas de impostos e taxas, o terciário, do turismo e da distribuição, é cada vez mais abundante e o primário e o secundário escasseiam, com os perigos que isso representa para a economia, o sistema de ensino anda a confundir diplomas com Conhecimento, o Sistema Nacional de Saúde precisa de uma reforma e libertar-se lóbis corporativos, privados e sindicais, a juventude continua a ser quase obrigada a emigrar, com a agravante de cada vez mais precisarmos de imigrantes para equilibrar a Segurança Social, em que essa necessidade que poderia ser feita de forma inteligente, capaz de servir os interesses do País e de garantir condições de dignidade a quem chega, está a ser satisfeita atabalhoadamente, de portas escancaradas e sem regras, começando isso a gerar fenómenos de escravidão,  exploração e conflitualidade social catalisadora de racismos e xenofobias.

MH – O que pensa da queda do governo e da convocação das eleições antecipadas?

MNN – Considero que o governo tinha que cair, mas a crise política provocada pela decisão precipitada do Presidente da República de provocar eleições legislativas, quando a Assembleia da República tinha todas as condições de produzir e sustentar um novo governo, veio prejudicar enormemente a gestão do PRR, lançar os partidos políticos num frenesim desnecessário nesta altura. No nosso ordenamento constitucional, um presidente só deve dissolver o parlamento quando são findas as legislaturas ou quando está em causa o regular funcionamento das instituições democráticas. Ora, a condição sine qua non para o funcionamento regular das instituições é deixá-las funcionar, e Marcelo Rebelo de Sousa não o fez.

MH – O que pensa desta espécie de guerra entre a justiça e a política?

MNN – Assistimos a uma crescente judicialização da política, com um ministério público que parece que anda à caça de políticos, prendendo para investigar, usando e abusando de escutas telefónicas, associados a um aparente jogo de fugas seletivas de informação, nunca investigadas, na maioria das vezes não conseguindo montar acusações sólidas que cheguem a julgamento ou, quando chegam, resultem em condenações. Não está aqui em causa beliscar a independência do ministério público, mas sim criar condições de responsabilização dos seus agentes, evitando que sejam eles mesmos, por manifesta e pública incompetência, a porem em causa a credibilidade da Justiça perante os cidadãos. Por outro, lado é preciso acabar de vez com os “políticos-homens de negócio”, são um cancro e essa responsabilidade cabe, em primeira linha, aos partidos políticos.

MH – O que pensa das próximas eleições legislativas e das atuais movimentações partidárias?

MNN – As próximas eleições legislativas serão bastante importantes para o País, e delas, das duas uma, ou resultará uma solução de estabilidade governativa, ou de uma instabilidade agravada.

O PSD, liderado pelo Dr. Luís Montenegro, evitando o erro de palmatória cometido pelo Dr. Rui Rio, que com isso garantiu a maioria absoluta do PS,  fez bem em coligar-se com o CDS, já que a coligação lucra com o método de Hondt em matéria de conversão de votos em mandatos, e cria alguma proteção sanitária, não só em relação às criancices permanentes da Iniciativa Liberal, mas e sobretudo, em relação ao partido propriedade do senhor André Ventura, um partido demagogo, xenófobo, manipulador, oportunista e recetor de todo o lixo produzido pelo ressabiamento, inveja e desilusão social, ou seja, um partido tóxico. Para o CDS, a coligação significa a sobrevivência e poderá significar crescimento, se o Dr. Melo se deixar de “marialvices”, touradas e sacristias, e conseguir reunir bons quadros, unir o partido e pagar dívidas.

O PS, que apostou numa via mais à esquerda, joga no voto útil dessa mesma esquerda, capaz de lhe assegurar uma solução que lhe possa garantir uma geringonça reciclada, ao mesmo tempo que o Bloco de Esquerda e o PCP tudo farão para evitar esse referido voto útil, tendo o PCP mais problemas, pois assiste-se a uma aparentemente inexplicável fuga do seu eleitorado, especialmente no Alentejo, para o partido do senhor Ventura. Digo aparentemente, porque na verdade, noutros países da europa, esse fenómeno de transferência de votos marxistas-leninistas para a extrema-direita já aconteceu muitas vezes, com resultados desastrosos para as formações comunistas.

O que é preciso, é que nesta fase, os partidos moderados escolham bons candidatos a deputados. Pessoas com maturidade e idades suficientes, com caminho e obra já feitos, que não venham diretamente das “jotas, ou das assessorias inúteis, capazes de assumir as funções a tempo inteiro, sem acumularem com outras, muito menos de índole politico-executivo, já que isso não dignifica nem a instituição parlamento, nem a função de deputado e muito menos os próprios. Com bons deputados moderados, a Assembleia da República funciona melhor.

MH – E quanto à realidade local, quanto à Maia, qual a sua perceção?

MNN – Em termos locais, acho que a realidade política da Maia é um oásis. As Juntas de Freguesia funcionam bem, a Assembleia Municipal faz o seu trabalho e a Câmara Municipal – bem sei que sou suspeito -, sob a liderança do Eng. Domingos Tiago, tem governado o Concelho exemplarmente, procedendo a avultados investimentos públicos, dando respostas sociais robustas, desenvolvendo politicas culturais, educacionais, ambientais, de ordenamento territorial e de saúde pública de nível europeu, assumindo com tranquilidade todas as novas competências que a administração central decidiu, literalmente, despejar sobre a administração local, e – muito importante – tudo isso mantendo uma saúde financeira da instituição sólida e capaz de proporcionar meios para responder aos desafios do presente e a outros mais que o futuro imponha.

MH – Gostaria que o atual Presidente da Câmara se recandidatasse nas próximas eleições autárquicas e você gostaria de fazer mais um mandato?

MNN – Embora possa haver outras soluções – a democracia tem sempre soluções – julgo que seria muito benéfico para o Município, que o atual Presidente da Câmara esgotasse o limite dos seus mandatos, dando-lhe tempo para concretizar todos os seus projetos, evitando conflitos intrapartidários que sempre acontecessem com as sucessões a destempo e permitindo, assim, que o Concelho da Maia, lucrasse com a sua competência até ao limite que a lei impõe. Quanto a mim, isso dependerá de várias circunstâncias pessoais e políticas, a começar pela minha vontade e pela vontade do Presidente da Câmara quando a questão se colocar. Veremos, veremos, para já o tempo é outro, é o tempo de desempenhar o melhor que sei as minhas funções, com a liberdade e confiança que me têm sido concedidas e depositadas, com a sobriedade que acho que carateriza o meu exercício, e com o sentimento que a minha experiência e conhecimentos ainda são uteis não só à instituição “Câmara Municipal”, mas também ao bom governo desta terra que é a minha e onde crescem os meus netos.

MH – Para além da política, o que faz da sua vida?

MNN – Eu tive a sorte de ter nascido com uma enorme fome de “Conhecer” e de ter sido educado a gostar de trabalhar. É isso que faço, e espero fazê-lo até ao meu último dia: aprender e fazer. É evidente que dedico a maior parte do meu tempo à Câmara Municipal, já que sou responsável por algumas áreas exigentes, mas também vou dando algumas aulas na universidade, o que me obriga a estar em sintonia com a juventude, a investigar, a estar atualizado e a escrever muito, desde artigos, a ensaios e a livros. Dedico, também, algum tempo diário à leitura, à pintura só quando posso, e a ver o mar, que é o único medicamento que tomo, e claro, a ver crescer os meus netos, ajudando e contribuindo, com mimo, palavras e ações para que possam crescer com a perceção dos momentos felizes que a vida lhes proporcionará, a lidar bem com os revezes e sobretudo a serem pessoas decentes.

MH – Para terminar, quais os seus votos para 2024?

MNN – Espero que 2024, que corresponde ao ano do Dragão, o meu signo chinês, seja bom para os meus concidadãos, para os meus conterrâneos e para a minha família. Que saibamos ser tolerantes, cidadãos construtivos e proativos e que tenhamos sempre consciência que o tamanho do estomago dos outros é igual ao nosso.

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