Até os Russos amam os seus filhos

Até os Russos amam os seus filhos

Conto escrito por Artur Bacelar, jornalista.

Belgorod, cidade Russa (fundada por ordem do Czar Teodoro I em 1596 como uma fortaleza fronteiriça), dista apenas 40 km da fronteira com a Ucrânia e 80 km de Kharkiv a grande referência na zona.

Igor, de 16 anos é o mais velho de uma família de dois filhos, que vive da agricultura.

A cansada leira que a família explora, não aceita maquinaria moderna e já quase não dá à luz o suficiente para os alimentar. O patriarca encontrou algum aconchego nas noites mal dormidas quando conseguiu um emprego numa fábrica de ferramentas.

Igor estudava e já sabia ler. Era um homem, sentia-se! O segundo na hierarquia familiar.

Certo dia a pandemia da moda atingiu violentamente o homem que na fundição dava vida às foices e martelos, atirando-o para um mal-amanhado hospital onde finalmente, por entre dias de sonhos desenhados, repousou para a eternidade

De repente Igor, passava a ser o homem da casa. Cabia-lhe a ele amanhar a leira e trazer sustento para casa.

Estava uma bela noite de setembro desse terrível ano. Sentado no chão do alpendre, pintava o ar com frondosas bolas de fumo que o levavam no imaginário a uma vida melhor. Foi quando se decidiu.

A 80 quilómetros dali, a ocidente, estava a bela Kharkiv, a segunda maior cidade da Ucrânia que ele revisitava na sua cama. Lembrava os pais dos seus camaradas que para lá partiram em busca de sustento e de lá voltavam ao volante de brilhantes automóveis.

Reuniu com a mãe e irmão de apenas 14 anos e prometendo um dia chamá-los, comunicou que, apesar da pandemia, iria tentar a sua sorte.

O inesquecível e solitário Natal de 2020 seria passado em Kharkiv. Apesar de apenas 80 km distarem de sua casa, os últimos euros angariados seguiram para a mãe poder aquecer a casa e a alma, mas também esquecer o ano que lhe roubou um homem e afastou-a de outro.

A pandemia que lhe roubou o pai, foi a mesma que lhe deu um emprego que nesta altura ninguém queria, mas que ele corajosamente agarrou.

Sem ver a família, com quem trocava correspondência em letras passadas a tinta, aos 18 anos, na alvorada de 2022, trabalhava agora na limpeza das unidades covid de um hospital. Atividade difícil, mas que lhe abriu as portas à melhoria financeira.
Atingir a maioridade permitiu-lhe abrir portas a novos e bons empregos, mas fechou-lhe as do regresso à sua terra natal, a apenas uma hora de viagem. Atravessar a fronteira significava obrigatoriamente servir no exército, por esse motivo não conseguir sustentar a família e deitar por terra os seus sonhos. Voltar à terra natal estava fora de questão.

Fevereiro de 2022, o ditador russo determinou uma “operação especial” contra o pais que o acolheu. Igor fintou as forças ocupacionais com uma identidade falsa que o dava como ucraniano e imprescindível no seu serviço.

Depois da surpresa, o mundo, a europa e o exército ucraniano, acordaram, adaptaram-se à ousadia Russa e repeliram as forças ocupacionistas de novo para as suas fronteiras.
Embora em guerra, a sua família estava ainda tão somente a uma proibitiva hora de distância, agora sem o sustento que regularmente lhe remetia.

Março, abril, maio… dezembro. Os meses passam sem notícias.

Inquieto com a situação, sem notícias, arranjou maneira de, de noite, passar a fronteira “a salto”. Um golpe de coronha na cabeça, fê-lo cair na macia neve que vinha vencendo a pé já em território russo. Um forte pontapé fê-lo virar-se para cima de dor. O barulho de uma culatra anunciava o pior, que não conseguia ver, devido a uma luz forte apontada aos seus olhos.

A luz apaga-se ao mesmo tempo que pensou ouvir o seu nome e o vulto que o cercava aproximava-se. Temente, adotou a posição que durante meses lhe deu conforto no ventre de sua mãe e esperou o pior. O que seguiu foi uma mistura de sensações térmicas e de olfato, há muito não experimentadas, que se traduziram num abraço.

Era seu irmão Sergei, de agora apenas 16 anos, ao serviço do exército russo, que afagando a ferida cabeça, num choro incontido, pedia desculpa.

Meia dúzia de outros miúdos soldados entretanto alertados para a situação, liderados por um temível veterano, ocorreram e levaram Igor e Sergei, agora traidores da pátria. Espancados, torturados, desanimados, os dias iam passando na pequena e fria masmorra que os confinava.

O Natal, ou o amor e aconchego familiar que representa voavam nas suas conversas e nas suas preces.

Um dia, o carcereiro deixara a porta aberta e resolveram fugir. Estranhamente sem oposição acercaram-se da saída onde encontraram a sua mãe. Receosos, sem estarem a salvo, ali próximo estava um carro com o motor a trabalhar e de porta aberta sem sinal do dono.
Decidiram-se pela tomada de posse do veículo e os três partiram em direção a Kharkiv, onde estariam a salvo. O trajeto de meia centena de quilómetros fez-se curiosamente sem ver qualquer soldado ou patrulha.

Já a salvo, intrigados, questionavam-se porque tinha sido tão fácil.

A mãe calma, sorrindo lágrimas, vocês nem se aperceberam, mas foram sempre observados de perto pelos militares.

– Mas como é possível não nos terem detido? – Esta é uma boa lição. Mesmo na guerra, até os Russos amam os seus filhos e nós e os ucranianos somos irmãos, filhos do mundo. Um mundo melhor, com humanidade e onde as ditaduras e o fascismo nunca vencerão!

Compartilhar este post