A desumanização da saúde: a corrida contra o tempo dos profissionais e o labirinto das senhas dos pacientes
A falta de tempo e as suas consequências. A tradicional relação de confiança e diálogo entre profissional de saúde e doente enfrenta, atualmente, obstáculos sem precedentes. Entre os mais relevantes está a escassez de tempo. A pressão para atender um número crescente de pessoas, em intervalos cada vez mais curtos, transforma as consultas numa verdadeira maratona penosa para o médico, onde a escuta cuidadosa e o esclarecimento de dúvidas acabam negligenciados.
Burocracia e sobrecarga administrativa. O papel do profissional de saúde tornou-se, cada vez mais, burocrático, marcado por uma sobrecarga de tarefas administrativas. Muitas vezes, o foco é desviado do acompanhamento clínico, devido à necessidade de preencher formulários, gerir sistemas informáticos ultrapassados ou lidar com falhas injustificáveis no software de receituário. Esta burocracia digital, ao invés de facilitar, cria obstáculos tanto para quem cuida quanto para quem é cuidado e gera ansiedade e stress.
O labirinto das senhas e a perda de empatia. Para os pacientes, o acesso aos serviços tornou-se um percurso complexo. O agendamento de consultas e exames depende, cada vez mais, de sistemas automáticos, em que a comunicação se faz por comandos numéricos e senhas. A senha pode organizar segmentando a fila de espera, mas também pode confundir os diferentes serviços ou causar marcações duplicadas. A interação humana, pilar do sistema de saúde, vem sendo substituída por processos impessoais e ineficazes do ponto de vista do conforto do doente.
Fatores que mantêm a queda da qualidade. A escassez de investimento em sistemas eficazes e o foco na quantidade comprometem a relação entre profissionais de saúde e pacientes. O padrão de excelência foi abandonado, perdendo-se o objetivo central da qualidade nos serviços. Enquanto a prática clínica enfatiza o atendimento ao paciente, a gestão geralmente prioriza resultados financeiros e mostra-se mais atenta à concorrência do mercado do que ao bem-estar do paciente.
O potencial da transformação digital. A transformação digital e a inteligência artificial podem tornar os sistemas de saúde mais eficientes e centrados no paciente, otimizando agendas e a distribuição de recursos. No entanto, é imprescindível priorizar a qualidade do atendimento e o bem-estar do paciente, em vez de focar apenas no aumento do número de consultas por turno.
Gestão eletrónica e automação de processos clínicos. O uso correto de sistemas eletrónicos de saúde permite atualmente integrar dados de várias fontes, dando acesso rápido e eficiente aos processos clínicos do paciente. Relatórios extensos, exames e opiniões de especialistas podem ser resumidos e apresentados de forma clara para análise prévia antes do inicio da consulta.
Atualmente, a entrevista clínica pode também ser registada por sistemas suportados por IA, que transcrevem em tempo real a conversa, identificando os dados clínicos relevantes e gerando relatórios estruturados (tipo SOAP, POP…).
Telemedicina e o resgate do tempo clínico. A Telemedicina pode ajudar a reduzir o número de consultas presenciais, especialmente através do acompanhamento remoto de pacientes crónicos. Muitas vezes, um simples telefonema poder ser suficiente para monitorizar o estado do doente, ajustar a medicacão e aliviar o medo e a ansiedade.
Conclusão. A implementação eficaz de inovações digitais pode contribuir para a redução da sobrecarga dos profissionais de saúde e otimizar o tempo dedicado à consulta, promovendo o foco no paciente durante os cuidados médicos e a melhoria da comunicação.
A tecnologia só faz sentido se devolver tempo ao médico e dignidade ao doente.
Opinião de Ovídio Costa,
Cardiologista