Depois da reforma, um novo desafio – Viver
A maneira como cada pessoa encara a reforma reflete a sua relação com o tempo, o sentido da vida e as desigualdades sociais, incluindo fatores como profissão, saúde e género. Quando pergunto “E agora, o que faz?”, as respostas são reveladoras: os homens tendem a definir-se pelo que foram: “Sou engenheiro reformado”, “Era vendedor de automóveis”, “Era motorista de transportes públicos”, enquanto as mulheres falam do que fazem: “cuido do jardim”, “faço voluntariado”, “cuido dos netos”.
Esta diferença está longe de ser universal, mas reflete uma realidade social- para muitos homens, o trabalho é a principal âncora da identidade; para muitas mulheres, o centro está nas relações e na ocupação do quotidiano. Quando o trabalho desaparece, o vazio pode instalar-se e com ele surgem os chamados “4 D’s” da reforma: depressão, divórcio, drogas e destilados. A reforma pode ser um momento de vazio imenso, mas também uma oportunidade para redescobrir a criatividade e um novo propósito. A reforma não tem de ser um ponto final. Pode ser, antes, uma página em branco, um tempo para reescrever a própria história, descobrir talentos adormecidos e regressar à curiosidade de aprender. Há quem volte à universidade, quem aprenda música, quem cultive oliveiras, quem pinte, quem escreva poesia, quem se ocupe a cuidar da casa – bricolage, pequenos consertos caseiros, há sempre tanto para fazer!
Este é um tema que começa a preocupar instituições médicas e científicas. Nos Estados Unidos, a Clínica Mayo estudou o impacto da reforma entre cirurgiões e cardiologistas de intervenção, profissionais habituados a viver sob muita pressão. A criatividade foi o motor desta nova etapa: um antigo chefe de cirurgia descobriu o prazer de operar máquinas de terraplenagem no Michigan; outro realizou o sonho de atravessar o país de mota; um cardiologista voltou à escola para estudar geologia, fascinado pelas rochas do Montana.
O essencial é reencontrar o propósito, essa centelha interior que tantas vezes se apagou sob o peso da rotina profissional. A reforma pode ser o momento mais livre da vida adulta, se for vivida com coragem. Exige aceitar que o valor de uma pessoa não depende do cargo que ocupava, mas da energia que continua a investir em si e no mundo. É um tempo para reaprender a viver. Não há idade para começar de novo. A criatividade, o convívio e a aprendizagem mantêm o cérebro desperto, melhoram a memória e o humor e o coração continuará ligado ao essencial. O segredo é não deixar que os “4 D’s” ganhem o lugar da frente. Porque no fundo, reformar-se não é deixar de ser – é apenas mudar o verbo: de fazer para criar, de liderar para partilhar, de trabalhar para viver.
Baseado em :What Makes Us Us?” de David R. Holmes Jr., MD, publicado no JACC: Cardiovascular Interventions (2025)
Opinião de Ovídio Costa,
Cardiologista


